Bela Vingança é um dos filmes mais promissores a concorrer ao Oscar 2021, se levarmos em consideração seu número de indicações. Dirigido por Emerald Fennell e estrelado por Carey Mulligan o longa está presente em cinco categorias escolhidas pela Academia. Dentre elas as de Melhor Filme e Melhor Atriz.
Apontado por muitas pessoas como uma atração de cunho feminista que, em outras palavras, critica e quebra a sociedade patriarcal erguida sobre padrões machistas; nos quais a voz de uma mulher tem muito menos valor do que a de um homem. Porém, há algumas escolhas no roteiro que diminuem um pouco a força desse discurso. Isso faz com que que Bela Vingança realmente não se enquadre como feminista em si.
A história e a repercussão
Antes de mais nada é preciso avisar que essa crítica contém alguns spoilers. Então se você ainda não assistiu ao filme, vale correr atrás do tempo perdido! Em suma, acompanhamos Cassandra (Carey Mulligan), uma mulher de 30 anos que largou a faculdade de medicina, após um crime. Colegas de classe estupram sua melhor amiga, Nina. Carregando esse trauma, Cassie resolve fazer justiça para outras possíveis futuras vítimas, fingindo estar bêbada em festas e enganando homens que tentam usufruir disso para levá-la para a cama. Dando uma lição de moral nos caras para que não voltem a cometer o mesmo ato com outras garotas.
Esse plot inicial, por mais interessante que seja, não é o que realmente desenrola o filme, ele é apenas um artifício para que a gente perceba o quão dona de si é a protagonista e como ela está disposta a correr qualquer tipo de risco pela causa que se auto impôs. No decorrer da trama, acompanhamos Cassandra largar a atividade, mas ao mesmo tempo compor um plano de vingança para todos aqueles que violentaram e desacreditaram Nina quando ela buscava por ajuda após ter sido abusada.
A protagonista em foco
Concorrendo ao prêmio de Melhor Atriz no Oscar, Carey Mulligan é uma das favoritas a levar a estatueta. Isso é fundamentado pela sua atuação intensa e firme. A cada cena, a personagem Cassie nos leva a sentir exatamente o que se passa na cabeça dela. As expressões faciais de Mulligan são um ponto muito alto de sua interpretação e contribuem fortemente para nos desestabilizarmos com cada acontecimento do enredo.
A sensação de luto e trauma parecem aos poucos irem deixando a tela e incorporando em nossos próprios seres enquanto assistimos ao filme. Apesar da jovialidade da atriz, há momentos em que a personagem parece denotar uma alma antiga e torturada,. Nos quais ela aparenta ainda mais velha do que a idade que tem, e isso aumenta a complexidade do trabalho da atriz. Vale ressaltar também que o filme não é inteiramente sombrio, em determinados momentos, Cassie busca por viver com leveza e se divertir. Sem contar também que a estética dos figurinos, de locações e a paleta de cores, introduzem essa impressão. Isso, em outras palavras, que vai sendo – passo a passo – dobrada pelo peso do sofrimento.
Represália até para as mulheres
O plano de Cassandra não engloba apenas os homens que atingiram Nina – como seu agressor, os cúmplices e o advogado que defendeu o jovem no caso, mesmo tendo noção que ele havia cometido um crime muito grave ao usufruir sexualmente de uma garota inconsciente em uma festa. Cassie resolve também se vingar das mulheres que não deram créditos ao discurso de sua amiga e, com isso, comprometeram o processo contra o estuprador, além de anos depois ainda enaltecerem ele como um profissional da medicina em ascensão.
Apesar dessas mulheres terem sido parte prejudicial na história, ao se vingar delas, a protagonista quebra com a expectativa do público de que ela havia tomado um lado em questão de gênero. Ao expor tais mulheres à retaliações que supostamente colocam elas em situações perigosas – para que sentissem o mesmo que a vítima havia passado na época do ocorrido -, Cassie perde seu mérito de justiceira do sexo feminino, se tornando apenas uma pessoa que move mundos e fundos para conseguir o quer – no caso, mostrar aos envolvidos o quanto eles fizeram mal direta ou indiretamente para Nina, que acabou tirando sua própria vida por conta disso.
Ruptura da sororidade
Nesta altura do enredo, a gente tem claramente a ruptura da sororidade, suspendendo com padrões feministas em que o filme poderia ter se encaixado até então. Por mais que as mulheres tenham agido de má fé ou ignorado os fatos quanto ao crime, fazer com que elas passassem por contextos em que acreditam estarem sendo sexualmente abusadas ou que alguma parente esteja correndo esse risco, destrói a longa caminhada da luta feminina para que o gênero se enxergue e seja visto com união entre seus membros e não carregando o estigma da rivalidade.
Uma mulher que vivenciou abuso, seja o seu próprio ou de pessoas próximas, jamais condicionaria outra a passar pelo mesmo trauma, a não ser que realmente tenha algum desvio de personalidade muito forte – o que pode vir a ser a ideia base do filme, mas como pinta Cassie de forma muito carismática, fica difícil interpretar totalmente por essa vertente.
O fim e a representação controversa das figuras masculinas
Ao nos levar a sentir toda a dor de uma mulher agredida, acaba sendo muito contraditória a forma com que os homens são pintados no final de Bela VIngança. Primeiramente, a gente tem um grande plot twist no qual a personagem principal descobre que seu namorado Ryan (Bo Burnham) foi conivente com o estupro de Nina. Essa cena é interessante porque deixa uma questão no ar. Pois, diante do confronto, o cara se defende dizendo “mas eu não fiz nada”, por apenas presenciar enquanto abusavam a menina. E aí entra justamente essa escolha de palavras, ele “não fez nada”, mas poderia ter feito. Tinha a chance de tentar parar a situação ou, até mesmo, ajudar com o relato judicial para que a garota obtivesse justiça – mas preferiu permanecer como cúmplice e desfrutar do ocorrido como motivo de entretenimento ou piada.
Humanização do culpado
O fim do filme também traz algumas surpresas na trajetória da história. Inesperadamente, temos a morte da protagonista que, apesar de chocar, também carrega consigo um sentimento de que não acabou por aí o seu plano e que podemos esperar mais até que rolem os créditos. Porém, junto com seu óbito, temos uma humanização do culpado.
O personagem aparece em meio à lágrimas, como se fosse um pobre coitado, após ter cometido um assassinato por escolha pessoal – o que acaba colocando Cassandra, que não passava de uma vítima naquele instante, numa posição de vilã, pois os sentimentos e interpretação dela nos levam a vê-la com mais convicção de seus atos vingativos, enquanto o moço mata e chora por arrependimento. Por mais que a personagem não fosse indefesa num plano geral, naquele momento em que o homem a estava sufocando, ela era – pois estava em desvantagem total de força e ele poderia facilmente só tê-la dominado sem matá-la.
O Plano de Cassie
No final de Bela Vingança, temos a concretização do plano de Cassie; que deixou os passos seguintes com um terceiro para quando já não estivesse presente. Com isso, acaba rolando a captura de seu assassino, que finalmente será sentenciado por algo. Porém, precisou de um super carnaval articulado pela moça, para incriminá-lo – o que mostra como o sistema é injusto e não faz os homens pagarem por crimes graves por serem acusados por mulheres que, enquanto vivas, têm seus relatos facilmente descartados em nível de importância. Ou seja, para notarem que o cara era um criminoso, ele precisou matar alguém, não era suficiente ter estuprado e filmado.
Será que o encerramento da história poderia ser melhor?
Ainda assim, mesmo havendo a vingança em si, o espectador ainda sente um gosto amargo com o final. E não é nem pela personagem ter precisado morrer para fazer o esquema acontecer. E sim pelo crime cometido contra Nina não ter sido resolvido verdadeiramente. O antagonista foi preso por uma infração totalmente nova e não pagaria por seus atos passados. Se Cassandra tivesse levado para as autoridades o vídeo que o incriminava, poderia reabrir o processo por justiça ao nome de sua amiga,. Fator que era seu real motivo de tortura – de plus, ela ainda estaria viva para presenciar sua própria vitória.
Entretanto, um final mais interessante, e até mesmo realista, que esse, seria se os criminosos escapassem e saíssem totalmente impunes. Bela Vingança chega a flertar com essa ideia, confundindo o público por breves minutos. Acabaria sendo um soco no estômago nos depararmos com esse desvio na trama. No entanto, seria muito mais acurado com o mundo em que vivemos, no qual milhares de vítimas são levadas a temerem delatar violências sofridas ou a serem desacreditadas e ridicularizadas pela perversidade que viveram.
Ficha técnica – Bela Vingança
Título original: Promising Young Woman
Direção: Emerald Fennell
Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Laverne Cox, Adam Brody, Ray Nicholson, Sam Richardson, Timothy E. Goodwin, Clancy Brown, Jennifer Coolidge
Distribuição: Universal
Data de estreia: 22 de abril de 2021
País: Reino Unido, Estados Unidos
Gênero: comédia, drama, thriller
Ano de produção: 2020
Duração: 113 minutos
Classificação: 16 anos
Onde assistir: somente nos cinemas