La Jetée e as Viagens Temporais no Cinema

Descrição da memória de um garoto na passarela do aeroporto de Orly, na França: Ele lembra do sol forte, do metal dos corrimãos e do rosto de uma mulher. Há uma comoção na passarela e entende que viu a morte de um homem. Posteriormente, juntando os cacos daquele dia, compreende bem mais que isso.

O início de “La Jetée”, a estreia na ficção em 1962 do diretor multimídia francês Chris Marker, descompassa ideias entre tempo e memória ao propor que esta configura o tempo, tanto quanto este cria a memória. O leitor de Dimensão Geek que puser os olhos neste “quase filme” (dura menos que 30 minutos) assistirá à fantasia distópica que influenciou parte de sua bagagem fílmica, do “Exterminador do Futuro”, de James Cameron, aos dilemas entre real/irreal em “Blade Runner”, de Riddley Scott. Sem mencionar “12 Macacos”, de Terry Gillian, praticamente uma refilmagem de “La Jetée”.

A história base é de mundo devastado pela Terceira Guerra Mundial, evento que desencadeou mudanças climáticas severas – sempre elas –, tornando inabitável a superfície das cidades; os sobreviventes se amontoam nos subterrâneos. Em Paris, grupo de cientistas experimenta com viagens no tempo, visando criar brecha que permita escoar comida, remédios e água do passado ou do futuro. O presente foi explodido pelas bombas, o negócio é catar nossas vidas pelo que passou ou que ainda vem. A invenção não teleporta fisicamente o viajante, mas penetra o que está nas memórias deste e permite que o tempo seja visto como filme interativo de cinema, criando instabilidade ao projeto científico pela individualidade e, beleza pura, espancando a visão de passado/futuro comum a todos.

O picote que a bomba deu à humanidade é ressaltado no filme pela forma com a qual Marker conta a história. Por meio de fotos narradas em off, que suspendem o tempo e aumentam a sensação de sonho do protagonista-viajante e de nós espectadores. Uma “foto-novela”, como é definido nos créditos de abertura. A missão do personagem se funde com suas lembranças e o estranhamento temporal, pela distância física, é ampliado pelas excitações sensoriais, a presença mental. Descolado existencialmente, é ele quem deve fazer a ponte entre o passado ideal (lembranças, logo, não confiáveis) e o hoje devastado – como, por exemplo, quem pede a volta da ditadura militar para sanar lixo construído pelas próprias ações no Brasil atual.

Ao contar a história por meio de fotos (stills), Marker também toca em tema caro ao tempo-memória nas artes e na vida. Quando lembramos, como enquadramos (frame) as imagens? Ao sonhar, podemos variar entre narrativa em fluxo, como no mundo desperto, ou editada, como no cinema-música-literatura. O que dita enquadramentos ou cortes de tempos mortos (quando nada acontece) em nossos sonhos ou memórias? Histórias em quadrinhos lidam com esses problemas o tempo todo, que podem tanto resumir as ações ao focar os desenhos no que o roteiro dita, quanto ampliar os significados entre os quadros ao escolher descolar imagens de palavras – as graphic novels do niteroiense Marcelo Quintanilha são tremendos exemplos desta última técnica.

“La Jetée” termina de maneira circular e não procura resolver a distância que criamos entre corpo e mente (foco e dispersão) em nossos tempos, antes escancará-la. O filme nunca foi lançado no Brasil, mas leitores de DG acham-no facilmente nos canais torrenciais competentes.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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