A programação da 20.ª edição do Festival Internacional “É Tudo Verdade” conta com a exibição do documentário “Filme Sobre Um Bom Fim”, que trata da efervescência criativa e cultural surgida dos círculos boêmios no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, entre o final da década de 60 e o começo dos anos 90. O filme é dirigido por Boca Migotto.
O bairro do Bom Fim – que se foi estruturando pela construção da Capela Nosso Senhor do Bom Fim (1876-1872), com a ocupação de escravos negros, libertos, que não tinham para onde ir (após uma alforria coletiva no final do século XIX) e com a vinda da comunidade judaica ao local a partir dos anos 1920 – tornou-se, na década de 70, uma opção de moradia para os estudantes do interior do Estado que ingressavam na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), e essa ocupação estudantil transformou o Bom Fim em um local de reunião para papear, beber, se divertir e mobilizar-se furtivamente contra a ditadura militar (porque, como muita gente parece ter esquecido, no regime militar quem vacilava “desaparecia” em algum porão de delegacia ou quartel).
Os depoimentos de frequentadores do Bom Fim – dentre eles Wander Wildner, Carlos Gerbase, Luciana Tomasi, Jorge Furtado, Marcos Breda, Biba Meira, Nei Lisboa, Edu K, Marta Biavaschi, Carlos Eduardo Miranda, Frank Jorge e Werner Schunemann – dão um panorama de como os bares do bairro, tais como a Esquina Maldita, Alaska e Copa 70, aliados à célebre programação de filmes do Cine Bristol, juntaram operários, universitários contrários à ditadura militar, jornalistas, adolescentes em busca de diversão, músicos, cineastas e grupos de teatro num mesmo espaço físico.
Essa variedade de pessoas e de interesses, somados aos gostos comuns e à vontade de fazer as coisas acontecerem, propiciaram trocas e experiências recíprocas que culminaram numa enxurrada de bandas (Replicantes, Os Cascavelettes, Graforréia Xilarmônica, Engenheiros do Hawaii e De Falla), grupos de teatro (como o Vende-se Sonhos), produção de filmes e de programas televisivos (a peça-filme “Deu Pra Ti Anos 70”, os filmes “Coisa na Roda” e “Verdes Anos”, os programas “Quizumba” e “Pra Começo De Conversa”).
Ao mesmo tempo, surgiam casas noturnas que acolhiam todas essas manifestações artísticas – como o Bar Ocidente, que realizava os eventos de “janela aberta” (já que a multidão, cheia de energia e com pouco ou nenhum dinheiro no bolso, geralmente não podia pagar o módico preço de entrada no bar) – ou que propunham apenas uma festança dionisíaca, como o Bar Escaler, em frente ao qual se aglomeravam milhares de frequentadores.
Todas essas iniciativas musicais, cinematográficas e teatrais foram a gênese de uma rica cena cultural porto-alegrense (do que algumas pessoas, como Eduardo Bueno, discordam) que foi “exportada” para o resto do Brasil durante a década de 80, notadamente as bandas Engenheiros do Hawaii, Uns e Outros e De Falla. As produções teatrais e cinematográficas também culminaram na criação da Casa de Cinema de Porto Alegre, e os participantes dessas produções (Marcos Breda, Jorge Furtado, Werner Schunemann) foram absorvidos pelo cinema, teatro e teledramaturgia feitos em “escala nacional”.
A ebulição boêmia do Bom Fim nesse período, com as ruas e bares lotados de gente bebendo, usando substâncias recreativas e se divertindo com estridência, passou a incomodar os moradores do bairro, que se mobilizaram em favor de uma intensa ação policial por volta de 1998, responsável pelo esvaziamento higienista do Bom Fim que garantiu o sossego pretendido pela vizinhança, e ainda abriu caminho à especulação imobiliária que descaracterizou urbanisticamente o bairro, substituindo os prédios históricos por conjuntos comerciais e edifícios residenciais feitos sob medida para a galera de classe média, à procura de “bairros decentes” onde morar.
Parece haver, nos depoimento apresentados, um consenso quanto à estagnação cultural em Porto Alegre decorrente da “morte” da boemia no Bom Fim, e também quanto à diluição do que se criou artisticamente no período. Os reflexos desse movimento criativo porto-alegrense estão presentes até hoje, no Rio Grande do Sul e no Brasil, com produções cinematográficas, estéticas audiovisuais e bandas influenciadas pela “cena” exibida no filme.
Sendo o documentário “Filme Sobre Um Bom Fim” um “parente” de outros filmes que analisam o surgimento de movimentos culturais similares por todo o Brasil (como “Rock Brasília” e “A Farra do Circo”), é por isso altamente recomendável a quem se interessa pelos caminhos da produção artística e cultural tupiniquins, e também para os aficionados por bons e divertidos “causos” de gente que, como a gente, bebeu, curtiu e deu vexame, ao mesmo tempo em que procurava criar, cantar, filmar, encenar… fazer algo pra que a vida valesse a pena.