“Bebidas alcoólicas não são servidas na Comic Con Experience (CCXP2016) por causa da faixa etária do público.” Essa foi a enigmática explicação dada por um segurança ao casal de amigos que procurava algo mais que milkshakes. Nos olhamos meio confusos, porque, se havia uma constatação no dia, a obviedade era a da maioria estar acima dos 18 anos de idade. Nada na convenção, porém, é o que parece ser e, certamente, questões de fronteiras etárias são as primeiras coisas a sumirem no ar feito mágica. A resposta do guarda também apontava para uma outra hipótese: neste encontro, quem é “de dentro” não pensa em sair, e quem vem “de fora” não terá ajuda para entrar. A CCXP é um templo, e as únicas induções de transcendência são as autorizadas por seus sacerdotes. Se você não é um crente, é melhor ficar longe.
Armado de minha pouca fé, lá estava na épica fila que antecede o abrir dos portais. Parecia que os segundos após o big bang estavam concentrados ali, naquele cosmos de gente, famílias, tatuagens, cabelos, papelão, óculos, nylon e celulares. O multiverso foi a garagem do Centro Imigrantes por, pelo menos, umas duas horas. A diferença para o pipoco original, no entanto, era a ausência de caos. Estávamos todos em filas simétricas, variadas aqui e ali por um ou outro Capitão América preguiçoso que se sentava, ou coisa do tipo. A fila para a CCXP já se mostrava um exercício geral de autocontrole, o que se confirmou assim que entrei no evento, porque a primeira coisa que aconteceu foi a formação de mais filas.
A CCXP é uma imensa Cuba impulsionada por filas gigantescas e promessas de realizações épicas. E são, mesmo. As escalas variam constantemente, indo do enorme ao mínimo no mesmo estande, sejam cartazes ou action figures – a nomenclatura de preferência para os bonecos de personagens dos quadrinhos. Imediatamente, a febre das filas toma os estúdios que confeccionam action figures e os auditórios para palestras. Os primeiros cosplays começam a desfilar pelos corredores, mas se sabe que os verdadeiros donos da terra ainda não estão entre nós. A música ambiente é uma hipnótica base eletrônica que prepara o corpo para o padrão de leve repetição que o dia trará. Mais que épico, nos primeiros momentos tudo funciona como um relógio.
A própria divisão geográfica da convenção é pura ordem. Imagine um retângulo onde a entrada é a base inferior direita. Ao entrar, dá-se de cara com alguns dos impérios desse universo, como os estandes da Iron Studios (action figures colecionáveis) e do Omelete (mídia voltada para o público da CCXP). Seguindo uma linha reta, é quase uma confederação de cidades-estados: os estandes da HBO, da Disney, as primeiras chamadas de Star Wars – sem dúvidas, a real unanimidade da Comic Con. Mais para o centro, no Artists Alley (Beco dos Artistas), estão os operários do mundo livre: os artistas independentes e grandes autores do dia, cercados por um cinturão de editoras e lojas de quadrinhos. Mais para a esquerda do retângulo, adentra-se o Oriente, começando por tímidos estandes de K-Pop e descambando para partidas de League of Legends narradas com o fervor de radialistas. No final do retângulo, como se guardando o nascer de um sol intergalático, as armaduras nipônicas dos Cavaleiros do Zodíaco, uma das atrações da temporada.
O público toma os espaços e forma filas ao redor de estandes, artistas e cosplays. Essa engrenagem funciona perfeitamente, e é aqui que uma das contradições mais aparentes da CCXP se mostra. Com toda essa ordem, o que sustenta de verdade o universo deste lugar é a narrativa do caos, do dissenso. Super-heróis desafiam a realidade e, desde sempre, a preferência do leitor ou espectador nerd é por histórias de rebeldes e anticonvencionalismos gerais. Embora o estereótipo seja o do adolescente virgem e espinhudo que nunca sai de casa (uma bobagem), nerds costumam abraçar roteiros complexos que prometem tensão e quebra de paradigmas como regra. A música de preferência é, generalizando, hard rock com tons épicos – que toca o dia inteiro na CCXP2016, com bandas ao vivo emulando o que de pior o chamado metal melódico pode nos dar. Com tudo isso, dificilmente poderia estar em um local mais pacífico. Ou seja, em uma analogia Star Wars, a torcida é para os Rebeldes, mas a regra de conduta é a do Império.
Tome-se a outra unanimidade do evento, a personagem Harley Quinn, dos quadrinhos do universo Batman. No ano passado, tornada uma febre com o lançamento do filme “Esquadrão Suicida”, Harley é a outra unanimidade da convenção. Sua fantasia é apropriada por garotas de todas as idades (ok, acho que o recorte seria dos 10 aos 55, pelo que vi) e, o que é bacana, não há o menor pudor em ter que se parecer com a namorada do Coringa. Bastam as chuquinhas no cabelo e o uniforme (Harley tem três), de resto, não interessa a forma física ou a altura de quem os estejam usando. Harley, além de psicopata e dada a passear com ora um bastão de baseball, ora uma marreta, é declaradamente uma vilã, o que não a impede de ser a mascote da CCXP2016, esse templo da ordem. Afinal de contas, em vista das contradições, o que querem os cosplays? Aparentemente, realizar nossas fantasias entre o real e o irreal; ou, posto de outra forma, entre o “lado de cá” e o “lado de lá”.
No calhamaço “Mil Platôs”, os autores Gilles Deleuze e Félix Guatarri propõem uma diferenciação entre o xamã e o sacerdote. Embora ambos sejam a hotline de uma comunidade com o mundo dos mortos e demais entidades, há uma questão de abordagem. O xamã, consultor espiritual de tribos primitivas, é um kamikaze do oculto que se coloca diretamente na linha de fogo. Ele, ou ela, atravessa para o outro lado e confabula diretamente com os espíritos, por favores ou compreensão. O sacerdote, por sua vez, terceiriza essa função de contato por meio de um sacrifício, cabendo ao sacrificado ganhar as graças do outro mundo.
O cosplay é uma espécie torta de xamanismo na era da tecnificação pós-tudo da imagem, qualquer uma, como verdade. Ao colocar a fantasia, acontece uma possibilidade de se conectar, e nós também, ao além-roteiro, e essa é a base das ideias que alimentam a CCXP2016. Simplesmente não há como ampliar a experiência transcendental do cinema ou dos gibis para além do produto acabado, mas a convenção tira leite de pedra ao prometer sua “ética do épico”: a aventura continua, e tão fora de nossa realidade cotidiana quanto possível. Nessa comunidade que quer a mágica ecoando sem parar, do mesmo jeito que as idas ao cinema ou à banca primeiramente proporcionaram, cosplays tornaram-se os xamãs que ousaram ter uma capa aqui e outra lá. As filas formam-se para eles tanto quanto para os estandes dos grandes estúdios. E, como praticamente tudo na Comic Con, o caminho para o outro lado é a possessão de um objeto, seja um uniforme ou um action figure colecionável de edição super-limitada.
Nossa relação com a imagem e as coisas é extrapolada na CCXP2016 como se estívessemos em um buraco negro. Não há racionalidade como a concebemos, e todos estão contentes. Gibis e brinquedos são parte de uma montanha-russa de significados, transformando-se em artefatos exóticos pelo simples movimento de uma caneta ou pelo número de série com poucos dígitos. É mais que regras de mercado, é a perfeita interação entre fé e finanças. A aura de singularidade dos objetos na CCXP2016 nunca derrete, é refeita e reacessada, não importa quantos iguais existam. Esse fluxo acontece sempre de acordo com os estúdios e as editoras, mediados pelo controle constante das respostas do público. Esse sistema é uma das explicações para o equilíbrio dos sentidos conflitantes na Comic Con.
O escritor de ficção científica William Gibson havia previsto um cyber-mundo controlado por corporações, com pouquíssima interferência de estados. Hackers e cyber-punks rebelavam-se contra o sistema, mas ser um ente virtual e se revoltar contra a virtualidade que permitiu sua configuração é osso, não haveria vitória da resistência, apenas reconfigurações de algoritmos. A CCXP administra com precisão as tendências violentas que estão no fundo das narrativas de seu universo e as reconfigura em uma magistral embalagem de transcendência. Por quatro dias, pode-se quebrar todos os paradigmas do cotidiano tóxico por meio de ecos das fantasias dos filmes e dos quadrinhos. A beleza disso tudo é que não há exatamente um controle externo, a engrenagem funciona por conexões com outras peças e faz o robô andar.