A Chegada | Crítica do filme

Quando a linguista Louise Banks (Amy Adams) é levada ao vale em Montana onde uma espaçonave estacionou, tem-se uma das melhores tomadas do filme. O plano é mostrado do ponto de vista de quem está no helicóptero do exército, sobrevoando uma sequência composta de estradas, carros, barracas, campos, montanhas e do objeto alienígena. Notam-se as escalas comparativas do que é artificial e do que não, reduzindo as in(ter)venções humanas a um tamanho mínimo, quando vistas em relação ao vale e à nave, a qual mimetiza o aspecto rochoso e circular da natureza. As coisas em “A Chegada” (“Arrival”, 2016) são postas em perspectiva o tempo todo, e o filme entra de vez no século XXI na medida em que explora as maneiras pelas quais os objetos são formas de comunicação.

O ponto de partida do roteiro é a aparição de discos extra-terrestres em doze pontos do planeta. Nessas zonas de conflito passadas ou futuras, como Serra Leoa e o Pacífico Sul, a reação após o choque é a de tentar compreender o que querem os visitantes. Apelidadas de “conchas”, as naves indicam abertura ao contato direto em intervalos regulares, o que faz com que a dúzia de nações mobilize peritos para um possível diálogo. Em Montana, nos EUA, o Coronel Weber (Forest Whitaker) coordena duas equipes principais, baseadas em linguística, chefiada pela doutora Banks, e em ciência, a cargo do matemático Ian Donnely (Jeremy Renner).

A tensão inicial do filme de Dennis Villeneuve está na relação binária reducionista sobre a qual civilizações modernas tendem a raciocinar: homem ou mulher, sociedade ou estado, terráqueo ou alienígena, humanas ou exatas. Nesse sentido, o sobrenome de Louise é indicativo do papel que lhe é reservado nesse jogo de soma zero de claro ou escuro, uma vez que “banks” significa “margens”, exatamente por onde a linguista terá que operar para achar respostas. O modo de furar a barreira dualista, ela compreenderá, se dará pelos lados, movendo-se não linearmente, como se estivesse em um labirinto.

Villeneuve parece ter esse conceito labiríntico como fundamento para seus filmes. A solução para os quebra-cabeças não está em ações diretas, que podem trazer resultados negativos, mas em se deixar levar molecularmente pelos elementos que compõem as situações. O caminho que a mente da doutora Banks terá que realizar é análogo aos da policial de “Sicario” (“Sicario”, 2015) e dos personagens de Jake Gyllenhall e Hugh Jackman em “Os Suspeitos” (“Prisioners”, 2013). Como se a resposta estivesse na própria pergunta e ambas fossem uma coisa única, mas desdobrável em múltiplas variáveis, similar à maneira pela qual os heptopodes visitantes aparentam raciocinar.

Essas veredas de grande sertão se conectam através de objetos dispostos ao longo de todo o filme. A comunicação torna-se uma coisa concreta, já que não poderá ocorrer pelas vias usuais de som e de costume. Louise propõe, acertadamente, que a forma de superar o jogo de espelhos que caracteriza a linguagem seja por meio do uso de objetos, sejam estes seres orgânicos, gestos ou palavras escritas. As coisas, como a doutora as compreende, não têm nomes próprios, mas são articuladas entre si por línguas diversas, as quais conferem a cada contexto ou local suas respostas aproximadas. Não por acaso, a primeira e a última imagem de “A Chegada” são de objetos cotidianos humanos. Um teto, uma mesa posta, uma varanda: uma casa.

Coisas, mais que pessoas, fluem por entre as memórias da linguista e ancoram o espectador para a mudança de perspectiva que liga Louise aos visitantes. Sem esses marcadores, pouco haveria como tornar inteligível a operação desbinarizante de espaço-tempo para a personagem, o que demonstra a relação, cada vez mais intrínseca, que está ocorrendo entre memória, objetos e percepção. No filme e fora dele, as certezas de uma linearidade fixa, que erroneamente se tem como única possível, são postas em cheque pela relação corrente, um tanto esquizofrênica, entre orgânico e artificial. A língua, enquanto capacidade de comunicar, provavelmente a coisa mais importante dessa primeira metade de novo século, é a terceira margem nessa fusão. Pode-se pensar que a relação entre imagem e significado que a projeção de um filme traz é uma mímese desse processo.

“A Chegada” está repleto de cinema e de memória, e o roteiro faz alusões constantes a clássicos da ficção científica. Os heptopodes aludem a uma nova versão dos tripodes de “Guerra dos Mundos”, o pássaro na gaiola remete à “Marte Ataca”, as espaçonaves têm a singularidade na natureza do monolito de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. O tom do filme, entretanto, é de interiorização da jornada épica que costuma ocorrer nesse gênero. As primeiras imagens com a doutora e suas memórias lembram a cinematografia de Terrence Malick, enquanto a trilha sonora procura pontuar em chave não linear: ao invés de orquestrações emocionalmente indutoras, tem-se uma mescla de pulsações eletrônicas, cantos tibetanos e de delicadas texturas. Espelham as instabilidades das memórias e das ferramentas de comunicação da doutora, metáforas dos tempos atuais.

“A Chegada” é uma maneira linear de contar uma história sobre a necessidade de não linearidade. O filme propõe fluidez de perspectivas como novos sentidos de comunicação, bem como é indicativo dos modos em que se procura barrar novas formas de pensar – aquelas que não são as “certas”, ou seja, opostas às “erradas”. Contrária aos objetivos dos governos, a chave para Louise é não raciocinar dualmente, balizando-se por intermédio de objetos, o que significará, eventualmente, se soltar no tempo e no espaço. A obra parece apontar para inescapáveis vertentes futuras de convivência, mas, para isso, terá que haver mundo até lá.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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