Além de divertir crianças e adultos, Calvin e Haroldo tratam de valores fundamentais para a vida em sociedade
Criada pelo artista gráfico estadunidense Bill Watterson em 1985, a dupla de amigos Calvin e Haroldo (Calvin e Hobbes, no original) vem entretendo e ensinando diferentes gerações de crianças e adultos. Publicada em jornais, seu formato original, pela última vez em 1995, vem sendo compilada em livros de diferentes formatos e preços, tendo em comum apenas o sucesso de vendagens. Mas qual elemento seria responsável pelo sucesso e longevidade da obra?
Além das traquinagens do hiperativo Calvin que, quase sempre, conta com Haroldo como cúmplice, o quadrinho remete o leitor inicialmente ao companheirismo entre os personagens principais. Entrecortando as peripécias da dupla, no entanto, Watterson insere problemas comuns a todos, seja na escola, entre os pais ou em alguma observação sobre notícias de jornais, que são “analisados” por uma criança e seu bicho de pelúcia.
Essa visão humanista de um mundo real, com problemas reais, já seria uma explicação razoável para o sucesso do trabalho. Mas as muitas questões éticas enfrentadas por Calvin e Haroldo encontram paralelo na vida real com a luta de seu autor contra a criação de “merchandise” envolvendo seus personagens.
Filosofia e torta na cara
Bill Watterson estudou artes e ciência política, nomeando suas principais criações em homenagem ao reformista protestante John Calvin, que acreditava na predestinação, e ao filósofo Thomas Hobbes, que possuía uma visão pessimista da natureza humana.
Ansioso para furar o bloqueio dos editores e publicar profissionalmente, assinou um contrato leonino que, praticamente, concedia aos “syndicates” (companhias que comercializam os quadrinhos com os jornais) todos os direitos sobre sua criação, podendo mesmo vir a substituí-lo como autor das histórias.
Após o sucesso da tira, as bases desse contrato viriam a ser motivo de muita dor de cabeça, ainda mais diante de sua luta pelo espaço dos quadrinhos nos jornais e contra o licenciamento de seus personagens para criação de canecas e camisetas. Isso por que Watterson acredita que a comercialização da imagem de seus personagens é uma agressão às suas personalidades e diminuiriam seu valor. Se uma criança pudesse comprar o Haroldo em uma loja, ele deixaria de existir, por exemplo.
Sobre o fim das aventuras de Calvin e Haroldo, dez anos após sua criação, Bill acredita que “uma tira de quadrinhos, como tudo o mais, tem um ciclo de vida natural” e a “arte tem que se mover continuamente, evoluindo, para permanecer viva”.
Em uma rara entrevista concedida ao Billy Ireland Cartoon Library & Museum em 2015, por ocasião de uma exposição com seu trabalho, Watterson tentou diminuir a importância de seu trabalho afirmando que “(nos quadrinhos) se você desenhar algo mais sutil que uma torta na cara, você será considerado um filósofo”.
Se as histórias de Calvin e Haroldo são, de fato, sobre amizade, a luta do autor contra a mercantilização de seus personagens sinaliza que a amizade, como todos os sentimentos humanos sinceros, não pode se comprada. Longe das prateleiras, os personagens vivem para sempre no coração e na memória dos leitores.
Trecho de entrevista concedida por Watterson ao Billy Ireland Cartoon Library & Museum pode ser lido aqui.
O documentário Dear Mr. Watterson (2013), do diretor Joel Allen Schroeder, não conseguiu entrevistar o artista, mas apresenta um painel interessante sobre o impacto dos personagens na cultura estadunidense.