Sandman e o fim do mundo como o conhecemos

Sandman, série em quadrinhos criada e roteirizada por Neil Gaiman, circulou por 75 números e algumas edições extra entre 1989 e 1996. Surgida no zênite do pós-modernismo nesse tipo de literatura (ora, cara-pálida), quando a norma passou a ser o questionamento do que era ser um personagem com super-poderes, gênero e sexualidade, violência e justiça etc., Gaiman construiu uma potente mistura entre existencialismo e mitologia, não raro promovendo a ideia de que ambos poderiam ocorrer ao mesmo tempo. Após o fim da série, o escritor inglês dedicou-se a escrever romances e produzir roteiros para Hollywood.

Em 2013, contrariando expectativas, voltou aos personagens com os quais havia jurado não mais se meter. Escreveu uma mini-série em 06 edições (a editora Panini a lançará no Brasil em 3 livros) chamada “Prelúdio”, descrevendo o acontecimento imediatamente anterior ao que iniciou a primeira edição de 1989. Recordemos: a saga original começa em 1915 com o aprisionamento de Sandman — a entidade perpétua Morfeus, responsável pelos sonhos — por um mago britânico rival de Aleister Crowley. Morfeus retornava, enfraquecido, de uma tarefa “em uma estrela distante” quando foi fechado em uma caixa de vidro, só se libertando em 1989. A mini-série recém-acabada se passa basicamente no ano de 1915, mas há uma ligação com 2015.

SandmanPreludio01As datas não são gratuitas. Gênese da história/lançamento da primeira edição (1915/1989); volta à narrativa/conexões contemporâneas (1915/2015). A arquitetura da saga imaginada pelo escritor inglês é toda esculpida sobre o tempo: os Pérpetuos, longos aprisionamentos, vórtices temporais, a lista de referências é longa. Não poderia ser diferente, o tempo na pós-modernidade foi-é-será mercadoria de luxo.

A recente mini-série, porém, não apenas retoma o legado de vinte anos atrás. “Prelúdio” chega a ser radical na contemporaneidade do que quer dizer: não estamos mais em uma situação de pós-modernidade (tomando os conceitos de Lyotard/Harvey), agora era outro: hora de encarar certas consequências e abrir novas vias. Ou seja, estamos no fim de um universo.

Ler “Prelúdios” hoje introduz um corte temporal fundo na leitura da hq em si de várias maneiras. É um prólogo, mas funciona como epitáfio de tudo (literalmente) até então; é um início ao mesmo tempo que um fim. Marquemos bem os artigos: UM início/fim. Em 2015, há diversos inícios/fins à escolha. Ideologias, principalmente, mas também o que é “operar existencialmente”: comer, falar, se mover, ler, escrever, dormir. Todo o tempo essas coisas mutam e descambam em uma nova concepção desse fazer. Todo o tempo ocorre um novo tempo.

Gaiman e o desenhista J. H. Williams III destrincham o roteiro pelas páginas de modo explosivo. Não há a usual concatenação de cenas dispostas de modo linear de cima-pra-baixo, preferem dispor a ação em cortes transversais diferentes em cada página — por exemplo, algumas são dispostas em sentido horário, outras à maneira de uma flecha etc. -, criando quebras dentro de quebras: enquadramento cinemático, literatura formal, atomização do desenho. Vale tudo. Quase daria para sapecar a pecha hegeliana de forma acompanhando o conteúdo na obra, se não fosse exatamente um corte com esse tipo de dialética que salta das edições.

Gaiman aqui se aproxima mesmo, como o mundo parece cada dia mais fazer, ainda que às avessas (mas não teria que ser assim?), dos conceitos de filósofos franceses como Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Os agenciamentos (hipo-campos de ação transcendental), os devires (as mélanges desses agenciamentos), a gramatologia (a construção de discursos como forma de plasmar “a realidade”), estão todos presentes. A radicalização no desmantelamento molecular da entidade Morfeus/Sonho é tanta que temos uma situação onde um aspecto deste perece, o que leva o restante a se encontrar para debater o que fazer. Ao final da conversa, um dos aspectos pede para acompanhá-lo, no que Morfeus (qual exatamente?) aquiesce.

O roteiro tem como norte o final próximo do universo como conhecido (até 1915). A ideia, entretanto, não é de fim Samdman preludiopor esgotamento, mas de necessidade, por vários agentes, de que haja uma nova ordem. Nesse ponto, Gaiman aproxima-se de conceitos desenvolvidos na antropologia pós-estruturalista de Claude Levi-Strauss. Em O Cru e o Cozido, volume 1 das Mitológicas, compilação de mitos dos índios Bororo, habitantes do território brasileiro, histórias de morte e renascimento são fundidas como modos de agenciar novas experiências de se estar vivo. O corte, entendamos bem, não é da civilização, mas de várias civilizações. Chega a ser fascinante como o argumento do escritor inglês reflete narrativas ameríndias: criaturas que querem o fim de tudo na HQ, o querem como “forma de praticar arte”; as metamorfoses tribais dos Bororos acontecem por mediações mágico-artísticas. Praticamente todos os seres (mineral, vegetal, animal) nas multi-galáxias em Sandman pensam e se afetam; os animais, solo e floresta articulam a possibilidade de passado-presente-futuro existencial no pensamento selvagem. A (ultra)circularidade de tudo liga os quadrinhos aos indígenas.

Dois personagens são introduzidos ao cânone na nova mini-série: Tempo e Noite, respectivamente pai e mãe dos Pérpetuos. Morfeus é como Macunaíma, filho do medo (o tempo?) da Noite. Ambos os progenitores têm, como nos melhores mitos (gregos, ameríndios etc.) características humanas, e ambos são extremamente egoístas acima de tudo. Esse egoísmo talvez seja mais que gratuito em nossa atual condição (que poderíamos chamar de apocalíptica ou antropocêntrica, mas para quê chamar? O fluxo atual é contrafluxo; universal e diverso), uma vez que o tempo foi domesticado pela Modernidade/Modernização como auto-estrada para escoamento de produtos e profissões, logo, foi “conquistado”. A noite é egoísta por natureza, mas sua personificação por J. H. Williams III, próxima a uma maia deliciosamente opulenta e lasciva, contrasta com o retrato do Tempo enquadrado no modo cristão-ocidental, magro e barbudo. Os Pérpetuos que nos regem (a saber, Sonho, Morte, Destruição, Desespero, Delírio, Desejo e Destino) são filhos do elemento máximo da primeira Modernidade (Tempo) e da ontologia em estado puro (Noite).

perpetuos

A volta de Neil Gaiman à série, portanto, é uma expansão do personagem, ao invés de mero prólogo do que já houve (no nosso tempo)/ virá (no tempo da narrativa). Atento ao entorno dessas primeiras décadas do século XXI, a história move-se de modo a não concatenar diagnósticos, mas, de um jeito beirando o anárquico, promover a necessidade de ensejarmos uma nova tarefa-utopia. Talvez esteja em ordem aqui uma poesia, literatura que nunca cessou de abrir portas e pensar o tempo:

A música do espaço para, a noite se divide em dois pedaços.

Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,

Fica com um braço de fora.

Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.

Um anjo cinzento bate asas em torno da lâmpada.

Meu pensamento desloca uma perna,

O ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.

Eu sou o olho de um marinheiro morto na Índia,

Um olho andando, com duas pernas.

O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.

(Murilo Mendes, “Corte Transversal do Poema”, 1930).

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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