Twin Peaks | Análise da série

Foi em uma encruzilhada que “Twin Peaks” (Twin Peaks, 1990/1991/2017) surgiu. Criada pelo diretor David Lynch e seu co-roteirista Mark Frost, a série debutou em abril de 1990, no meio de tensões que antecipavam o novo milênio: a década anterior havia oscilado entre uma escalada e a implosão da Guerra Fria, enquanto a que se anunciava traria a consolidação da globalização e internet. O roteiro, a investigação sobre uma colegial morta em um cafundó dos EUA, prometia pouco mais que um bom suspense, mas acabou por carregar a televisão ocidental para uma nova fase. Após “Twin Peaks”, noções de linearidade e direção foram revistas, e a conexão entre cinema e tv tornou-se irredutível.

Séries televisivas haveriam que ser modernizadas e confrontar a noção de realidade que costumavam exibir seria um bom começo. Afinal, o público já era outro quando “Twin Peaks” apareceu. A simbiose entre avanço tecnológico e mercado globalizado, a partir da década de 1980, fragmentou percepções sobre o real, criando sociedades cada vez mais esquizofrênicas. Por um lado, cidadãos acriticamente informados e conectados através da aquisição de aparelhos de tv. Por outro, um aumento sem precedentes na desigualdade econômica e migração urbana mundial. Nesse momento de disparidades, David Lynch decidiu trazer seu projeto de narrativa cinematográfica para dentro das casas.

O diretor de “O Homem Elefante” (The Elephant Man, 1980) e “Veludo Azul” (Blue Velvet, 1986) construiu uma carreira baseada em símbolos e ambiências, contrastando com os conceitos mais tradicionais de se contar uma história. Em seus filmes, mesmo nos mais convencionais, a fumaça pode ser uma personagem e a cor revelar o plano astral de uma cena. A única dualidade que Lynch parece reconhecer é aquela entre luz e escuridão, mas, na verdade, ele as percebe como partes de uma mesma coisa. Uma espécie de cinema xamânico que existe entre dimensões, no qual conecta todos os elementos de um filme – roteiro, edição, atores, efeitos etc. – em um bloco circular, para se alcançar um lugar além do que está na tela. Esse momento pós-cinema, aliás, também fica a cargo de quem o assiste, porque é formado por medos, desejos e ideias do espectador.

Ao contar a história de Laura Palmer e a busca do assassino pelo agente do FBI Dale Cooper, o diretor manteve a mesma tensão e os elementos de sua cinematografia. Lynch coordenou uma primeira temporada em marcha lenta (alguns diriam fúnebre), na qual a identidade do criminoso pouco interessava. Para o público cativo da série, e estes não eram poucos, realmente importava o fim do limite entre sonho e realidade proposto pelo diretor. Cooperavam para o caleidoscópio onírico e singular a música incidental, a fotografia oscilando entre sépia e cores estouradas, os personagens imateriais. Após uma segunda temporada, na qual Lynch preferiu abandonar o projeto, “Twin Peaks” foi encerrada. Na fantasmagórica cena final, Laura Palmer, ou um espírito com sua forma, diz a Dale Cooper que se reencontrariam vinte e cinco anos depois.

Em 2016, uma terceira temporada foi anunciada, com Lynch e Frost de volta ao comando. Para críticos e público, a questão era quanto à relevância da série vinte e cinco anos depois, uma vez que, nesse intervalo, a televisão passou por uma, assim chamada, “fase de ouro”. Vários textos na imprensa ou em blogs apontaram que essa época dourada foi construída sobre os caminhos apontados por “Twin Peaks”, principalmente em relação à independência criativa imposta por David Lynch. Nesse sentido, portanto, poderia haver uma fossilização dos elementos que foram surpreendentes em um primeiro momento.

Não foi o que ocorreu. A terceira temporada abre com a cena de despedida do passado e, a partir de então, inicia-se a montanha russa do universo do diretor. Incrivelmente, “Twin peaks” parece fazer mais sentido hoje, já que havia psicografado a desconjuntura existencial atual todos aqueles anos atrás. A nova série parece também condensar os filmes feitos pelo diretor nesse meio tempo, em especial “Cidade dos Sonhos” (Mulholland Drive, 2001) e “Império dos Sonhos” (Inland Empire, 2006), conectando ideias sobre multidimensões e possessões astrais com questões mais corriqueiras dos personagens. Como acontece ao se ler Franz Kafka (que faz uma aparição em um poster no terceiro episódio), o ponto de partida e o de chegada são tratados com o desrespeito de quem percebe o tempo como vias circulares que se recriam constantemente. O que importa é o como sentir, em vez de o que descobrir.

“Twin Peaks” continua relevante para quem deseja narrativas forjadas por sentidos, em oposição à lógica linear. A fragmentação do roteiro espelha as rupturas do real trazidas pelo mercado tecnologizado, de certa maneira nos colocando a todos no meio da encruzilhada em que a série foi criada. Nas possibilidades de rotas variadas, reconfigurações existenciais surgem com mais força, ao mesmo tempo em que criam novas responsabilidades para quem as assume. Como no rosto de Laura Palmer, pura luz que vai ao encontro de chamas infernais em um mesmo instante.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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