The Wire | Uma das melhore séries de todos os tempos

The Wire foi exibida pelo canal a cabo HBO de 2002 a 2008 em cinco temporadas, recentemente remasterizadas em alta definição. No período entre 2004 e 2007, 196 mil brasileiros foram mortos, enquanto 170 mil pessoas morreram em zonas de guerra como Iraque e Sudão. A média na contagem da Guerra Civil nacional é de um policial para quatro civis, sendo 75% jovens negros, dos 15 aos 25 anos de idade. Os números de defuntos na Baltimore da série batem com os nossos, da faixa etária à tonalidade mais escura do corpo. O leitor de Dimensão Geek, no entanto, saca que a série futuca o barro e libera coisa maior: a engrenagem que alimenta esses números e peles.

Criada pelo norte-americano David Simon, The Wire tem como base de roteiro unidade policial especializada em escutas (o “wire” do título) para captar provas contra traficantes de drogas na área urbana de Baltimore, cidade portuária próxima à Nova Iorque. As dificuldades dos policiais são em três níveis: ginga dos traficantes, letargia do sistema de segurança pública e interesses da administração política. Todos ligados. À medida que se avança nos capítulos (12 por temporada), percebe-se que nenhum desses problemas funciona de maneira independente, apenas diferem os modos da briga pela qual, paradoxalmente, mantêm o status quo. O que fica em suspenso o tempo inteiro nos 60 capítulos é o quanto se reprime para que nada mude – nesse sentido, é genial o uso de música na série: quase nenhuma, já que música induz mudanças de humor. O tema de abertura resume a ópera ao utilizar a mesma melodia com intérpretes diferentes por temporada. Variações sobre a mesma coisa.

Esqueça CSI ou programas mundo-cão da vida. The Wire funciona no miúdo, sem respostas e sem apontar dedos. Nessa série, ninguém relincha – é nos detalhes que a engrenagem aparece, embora o mingau engrosse de vez em quando. A edição circular parece não se preocupar com quem encadeia as sequências, mas sim o quê: de escola para delegacia; de restaurante caro para merenda entre tabefes na sala de interrogatório. Quando os homens da lei grampeiam, o couro come, sendo imediatamente replicado pelo crime organizado nas ruas, com a diferença de que ali é a bala que come. Lindezas do roteiro: o tráfico é empreendimento livre que recruta os que não veem coisa melhor para fazer um troco, reflexo da desindustrialização; a polícia é dona do chicote que estala com maior ou menor força, de acordo com o lombo onde caia; o alto escalão, zona cinzenta que vai do Coronel ao Prefeito, aperta o botão de avançar/pausar nas relações de força. As diferenças entre os grupos focados ficam a cargo dos afetos de nós telespectadores, da mesma forma que você escolhe (ou é levado a escolher) o que sentir ao ver corpo caído na rua. A série não elege heróis nem bandidos, coisa rara na televisão ou no cinema.

A palavra que liga os universos de The Wire é transparência. Tremendo problema, já que é justamente a transparência ostensiva de nosso tempo que produz o descompasso. Vê-se pobreza; vê-se violência; vê-se exclusão. A gente vê. As respostas para as coisas vistas nas ruas (ainda espaços de encontro – isto é, em nossa sociedade, de medição de forças) oscilam desde trancas mais responsa (condomínios, câmeras etc.) ao proverbial “mata tudo”. Conversa, só com os meus, já que individualidade e independência são as ideias ocas que recheiam os balões “felicidade” e “liberdade”. Ao ver esse esquema tão claramente, tem-se que é normal que ele exista, o que, obviamente, é uma cretinice. O leitor de Dimensão Geek provavelmente gosta de ver pessoas fazendo o que gostam – nerds, particularmente, sabem o que é apanhar por não se misturar. Vai concordar que botar normas no que é mau ou bom é um baixo-astral danado. “Pobreza” é normatizar, “essa gente” é normatizar.

A série é gigante justamente por se opor a esse esquema. Por isso, aproveite a recente remasterização em HD e convide alguém para assistir com você. Enquanto veem, batam aquele papo sobre o que está rolando e procurem aplicar no entorno. Por outro lado, assista só e desenvolva raiva de tudo, vá às redes sociais e largue uns coices. Melhor ainda, não chegue perto de The Wire. O bom de ser livre é poder escolher. Mas pense: o que muda? O número de mortos nas guerras urbanas (contra drogas, contra crime, a favor da grana) é que não.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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