Procurando Dory | Crítica do filme

Na transição do século XIX para o XX, o francês Henri Bergson (1859-1941) publicou Matéria e Memória, um estudo sobre a relação entre corpo e memórias. Sua proposta é de que o cérebro age como uma espécie de guardião do entra-e-sai memorialístico, em vez de reprodutor de lembranças. Se não o fizer, corremos o risco de afundarmos sob o peso de nossas informações passadas e entrarmos em um estado profundo de consciência, o qual impediria nossa capacidade de agir. Dory, a desmemoriada protagonista de Procurando Dory (Finding Dory, 2016) confirma os escritos de Bergson e faz da ação seu modus operandi, enquanto se depara com um outro desafio ao seu ambiente natural.

Sequência de Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003), a animação traz Dory novamente buscando entes desaparecidos – neste caso, seus pais -, mas, como o título do filme promete, ela está ostensivamente atrás de si mesma. Amnésica, quer recuperar suas memórias, que aparecem em intervalos involuntários e a motivam a agir (“continue a nadar” é um dos lemas do filme). Dory tem dois aliados patologicamente desequilibrados em sua jornada, Marlin, o assustado pai de Nemo da aventura anterior, e Hank, um polvo misantrópico que é parcial a viver o resto da vida isolado em um aquário. A maior parte da animação se passa em um instituto marinho, o qual, se nos introduz a novos amigos, também nos apresenta à outra ameaça para Dory, o antropoceno.

Período geológico no qual uma única espécie, a humana, tem a capacidade de alterar profundamente o funcionamento da Terra, não há um consenso sobre a datação precisa do início do antropoceno. Geólogos parecem concordar que se intensificou a partir da Revolução Industrial, ou seja, por volta da transição do século XVIII para o XIX. Atualmente, estamos em um pico antropocêntrico, e Procurando Dory é recheado dessas pegadas: carcaças e dejetos artificiais espalhados pelo oceano pontuam todo o filme, enquanto o instituto se dedica a capturar e manter espécies marinhas “doentes”. A junção dos ambientes marinho e terrestre é mediada pelos avatares da modernidade, sejam cargueiros naufragados ou caminhões, que Dory deve aprender, literalmente, a pilotar para poder escapar de suas agruras.

Diante de seus dois nêmesis, os dejetos psíquicos e materiais, Dory toma decisões utópicas e radicais. Em um momento particularmente brilhante do roteiro, confrontada pelo fracasso, prefere abandonar seus medos e ensaiar um “sair de si” para melhor achar a solução. Em tempos de redes sociais e da fragmentação psicológica nas interações virtuais, o gesto de Dory rechaça a ideia de fuga dos problemas, ao acenar com distanciamento somente para melhor formular estratégias. É uma convergência entre consciência e ação que rejeita escapes nostálgicos impostos por uma era de pura informação. Se a atual circulação de conhecimento nos impele a desejar o conforto de um passado idílico, a desmemoriada Dory prefere operar no presente.

No filme, a saída para a simpática amnésica e seu bando de doentes é o estouro das vias propostas pelo antropoceno. Entre estar junta de seus pais, porém confinada a um aquário, ou retornar para o oceano, mas com seus amigos relocados para outro instituto, Dory decide-se pela utopia. A sequência final lembra a opção radical dos dois sobreviventes da locomotiva de Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013), de explosão da porta daquele trem, em vez de o manter em movimento. Manter a liberdade física e mental leva Dory a controlar suas memórias pela superação das barreiras materiais, que envolve, claro, abrir buracos nas barricadas. Procurando Dory, nessa chave, é pura subversão para a era virtual.

Matéria e memória, portanto, tomam uma dimensão na animação que atualiza o título do livro de Henri Bergson. A circulação de informação impõe uma espécie de “ditadura do saber”, que rearranja e solidifica nossa relação mental com nossas memórias, enquanto a circulação de mercadoria povoa nosso cotidiano com tralhas igual ao oceano onde Dory vive. Procurando Dory pode ser vista como uma animação sobre movimento e estratégias, afinal. Lembremos que, entre pensamento e expressão, existe uma vida, como escreveu Lou Reed (atualizando Hegel). Vida que é cada vez mais oprimida pela “nostalgia de futuro” que a atualidade impõe.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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