Demolidor| Análise da segunda temporada

Demolidor (Daredevil, 2015-2016), série do canal pago da internet Netflix, estreou sua segunda temporada em março deste ano. Como de hábito, todos os episódios foram disponibilizados de uma só vez, o que permite a maratonistas de sofá assistir aos 13 capítulos em bloco e os comparar com os do ano passado. Vale a cotejada, uma vez que o roteiro se utiliza de desenvolvimento de questões similar ao que vem ocorrendo fora da tela, assim como escancara diferenças das adaptações de quadrinhos para o cinema e para a televisão. Não há meios de se aprofundar em um roteiro que esteja limitado a um par de horas, como acontece nas adaptações de quadrinhos dos grandes estúdios.

O enredo tem como centro as atividades de Matthew Murdock, advogado criminalista de dia e vigilante das ruas à noite. Cego, por conta de um acidente radioativo na infância, Murdock desenvolveu os quatro sentidos restantes de maneira sobre-humana e foi treinado nas artes ninja. Aos poucos, ele foi concebendo a identidade do Demolidor, procurando conjugar seus dois empregos em uma simbiose “pega-e-prende”: aquele que escapasse ao sistema penal, defendido pelo advogado, seria reconduzido à força ao sistema carcerário, pelo vigilante. A ética de Murdock/Demolidor é bastante específica, ou seja, não matar em hipótese alguma e confiar na justiça em que ele acredita: a lei, dos bons, vence o crime, dos maus.

O grande trunfo da série é explorar nos episódios maneiras de complicar, progressivamente, o binarismo cristão do herói (Murdock é católico ferrenho, enquanto o Demolidor veste-se como um demônio). Para isso, a multiplicidade dos ultratempos modernos explode na Nova Iorque de Demolidor, seja na diversidade étnica e de gênero, ou no cruzamento de interesses globais do crime organizado. As encruzilhadas propostas pelo roteiro são várias e chegam ao ponto de colocar os personagens periféricos no mesmo plano de importância do herói para que você, espectador, chegue a alguma conclusão sobre os acontecimentos. As convergências com os impasses urbanos da atualidade são notáveis e nos permitem imaginar três linhas de discussão, no roteiro, que mimetizam questões correntes: urbanização, gênero, judicialização da sociedade.

Demolidor tem uma marcação territorial forte, focada na periferia. Enquanto o Homem-Aranha e Jéssica Jones patrulham Manhattan, Murdock não sai do bairro de Hell´s Kitchen, lugar bastante similar a uma Itaquera paulista. Ali, na primeira temporada, ele se confronta com o inferno corrente da re-urbanização, ou seja, remoções de cidadãos e planificação de áreas comerciais, a mais pura segregação urbana. Patrocinada pelo Rei do Crime, o maior arqui-inimigo de Murdock no mundo dos vivos, há uma tentativa de renovação territorial para cima dos habitantes de Hell´s Kitchen que lembra os desmandos do governo federal durante os preparativos para a Copa do Mundo de 2014, ainda em curso para as Olimpíadas cariocas deste ano. A confluência de interesses do crime organizado global na periferia dos grandes centros urbanos também é explorada na série, com diversos grupos de imigrantes disputando as rotas de tráfico de drogas e de pessoas. Claramente, estamos mais próximos da perifa de The Wire que dos heróis brejeiros de Smallville.

Gênero e diversidade racial são elementos ostensivos do roteiro. A segunda temporada, especialmente, deixa claro que mulheres são a base para que o enredo se desenvolva. Da promotora latina que inferniza o escritório de advocacia do herói à parceira ladymacbethiana do Rei do Crime, sem esquecer da centralidade do personagem Elektra, são elas que avançam as questões centrais de Demolidor: poder e territorialidade. Ressalte-se a variedade biocultural de todas, que podem ser loiras, morenas, estrangeiras, latinas, negras. A cidade da série não se fecha sobre uma ou duas linhas fenótipas centrais, prefere enquadrar o caldo cultural grosso que corre solto nas periferias da vida e dar um colorido matriarcal aos escapes interrelacionados do roteiro.

O tema principal da atual temporada é a judicialização da sociedade. Não apenas quanto à discussão do sistema penal, mas discorre igualmente sobre o que significa atuar como um vigilante. A introdução do personagem Frank Castle/Justiceiro como vetor para esse duplo debate foi um golpe de mestre: nas ruas, o Demolidor se vê diante de um vingador nos seus moldes, mas totalmente oposto à sua ética de “não matarás”; no tapetão, Mathew Murdock terá que defender Frank Castle, o nome real do Justiceiro, da sanha não menos morticida do sistema penal. O Demolidor sabe que crimes no espaço público e no espaço carcerário correm em paralelo, o que se choca com sua crença na justiça “boa” que sempre derrota a “má”. Vingadores justiceiros e heróis vigilantes se chocam na narrativa de maneira que transcende a simplificação do conceito de Lei, que anda um tanto em voga nas redes sociais.

O binarismo de Murdock é esticado ao extremo na tentativa de entender os vários aspectos conflitantes dos elementos que se apresentam a ele. A segunda temporada de Demolidor vai fundo em questionar a validade de um pensamento simplificador em relação aos diversos matizes da atualidade, sem sacrificar a série no que ela se propõe a nos entregar, que é um conto de super-heróis moderno. Debaixo de toda a pancadaria que faz o sangue literalmente escorrer na tela, se desenvolve uma ligação cruzada entre todos os elementos que formam uma cidade e que produzem sua beleza e seu caos. Não daria para contar essa história em um filme-pipoca de duas horas, é na serialização de personagens de quadrinhos, aparentemente, que os temas podem ser desenvolvidos de modo mais profundo.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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