Westworld | Análise da 1.ª temporada

Em 2016, celebram-se os 500 anos do livro “Utopia”, de Thomas More. A efémeride é quase cabalística, se pensarmos que a atual Quarta Revolução Industrial – a inovação em tecnologia digital e inteligência artificial -, está definitivamente acontecendo em paralelo a outras utopias do antropoceno, como a coordenação entre extração de recursos e controle climático. Da ilha perfeita imaginada pelo filósofo inglês a um planeta que quer superar seus desequilíbrios por meio de expansão tecnológica, há um ciclo de meio século de ilusões que abrem brechas para outras considerações do porvir, especialmente as distopias. Nesta categoria encaixa-se Westworld, produzida pela HBO.

Série com programação de cinco temporadas, cada uma com dez capítulos, Westworld foi criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy. A base foi o filme de 1973 do autor e diretor Michael Crichton, com roteiro sobre um parque temático que dá título à série, onde os visitantes podem experimentar situações do século XIX, época da expansão fronteiriça dos EUA. Basicamente, querem viver a incipiência de leis, moral e costumes associada ao popularmente conhecido “velho oeste”. Os residentes do parque são robôs que simulam personagens típicos do imaginário do período, como xerifes, prostitutas, índios e arruaceiros. Os visitantes têm total liberdade para fazer o que quiserem com os residentes, incluindo estuprar e matar, enquanto estes são programados para nunca machucarem aqueles.

De acordo com o sistema do parque, todos os dias os residentes têm suas memórias das atrocidades submetidas apagadas. Na manhã seguinte, é voltar ao terror diário de seus ciclos de histórias, uma forma perversa de trazer videogames à vida real. A tensão principal que o roteiro propõe é a gradual tomada de consciência de alguns dos residentes, ou seja, a capacidade de ação fora de seus programas. Esse processo ocorre por meio de um erro nos sistemas internos após uma atualização, o que torna alguns robôs mais resistentes ao formatamento diário. Com o tempo, passam a buscar respostas aos deja-vus recorrentes.

A ideia de memória como palimpsesto é um dos motes de Westworld, que se afasta de distopias de guerras como a Skynet. Para Dolores (Evan Rachel Wood), uma das personagens-máquina principais, lembrar significa desmontar a repetição e passar a ação por vontade própria, o que inclui desenvolver a capacidade de amar e matar. Memórias são o que dão aos robôs o mesmo livre-arbírtrio que Adão sentiu ao se lembrar que estava nu, após comer o fruto proibido, de acordo com o livro sobre o que deve ter sido o primeiro parque temático criado. Recordar e esquecer, de certa forma, é o que Westworld promete aos seus visitantes humanos, uma vez que se vive o passado sem regras e, após o pacote comprado, volta-se ao mundo presente civilizado.

O outro arco do roteiro é a luta corporativa interna dos operadores do parque. Pense em “Fúria de Titãs”, substituindo o tabuleiro de xadrez por um holograma em 3D. Como os olimpianos, o staff de Westworld está dividido em campos diferentes, o dos que querem desenvolver o entretenimento fácil e o dos que querem aquele algo mais que demiurgos geralmente procuram. O personagem Robert Ford (Anthony Hopkins) lembra o Eldon Tyrrell de Blade Runner, em sua sanha de construir o “mais humano que o humano”, justamente o limite que os acionistas do parque não querem ultrapassar. Imagine Mickey Mouse enfiando, de propósito, o rabo no olho de uma criança na Flórida. Um ser humano poderia fazê-lo, daí a apreensão.

Westworld é uma distopia na qual os humanos são os repressores, ao inventarem semi-humanos para extravasar o estresse da vida moderna. Não se pode perder o simbolismo do parque como espaço de experiência controlada de troca de identidade, já que não há como se ferir e nem se arrepender de qualquer vontade, seja esta estuprar ou estripar. Ao descobrirem sua sentiência, os residentes do parque invertem estes desejos nos visitantes, como Dolores faz com o visitante neófito William (Jimmi Simpson), o que desencadeia uma descida ao id de ambos, se imaginarmos que Dolores poderia ter um id.

A Utopia, de Thomas More, era uma ilha perfeita onde todos eram felizes por causa da ordem imperante. O que Westworld aponta, como tantas outras obras, é a dificuldade de tornar essa ordem realidade sem que os desejos e afetos baguncem o arranjo todo. A ideia de distopia, portanto, parece mais ajustada ao destino de criaturas sentientes, como os robôs da série. Memórias e vontades são reguladores, ao mesmo tempo, de ordem e de caos, nos demonstram os residentes e seus controladores, bem de acordo com a vida na era das redes sociais.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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