É tudo Verdade: O vencedor do oscar 2015, Citzenfour

O “Cavaleiro das Trevas” (“The Dark Knight”, 2008), segundo filme da trilogia gótico-fascista de Christopher Nolan sobre o homem-morcego, pré-data os acontecimentos de “Citizenfour” em levada é-tudo-por-uma-boa-causa típica da década Bush jr. e a arquitetura do policiamento global: de rigor em roteiro nolaniano, à certa altura o herói se vê diante de escolha dualista retardada, nessa fita (fita, ha!) estando à mercê do plano do Coringa de forçar escolha entre morre-muito/morre-pouco-mas-tua-mina-tá-no-meio pra cima de Batman. Este então se lembra de um projeto que as empresas Wayne desenvolveram para o exército, um equipamento capaz de rastrear celulares e armazenar as conversas. Dá certo: Batman/Wayne faz o que deve ser feito, o Coringa vai preso e, bastante estressado no filme, o aparelho rastreador é destruído de bom grado pela empresa, tendo servido seu fim.

“Citizenfour” (Citizenfour, 2014), de Laura Poitras, em cartaz no festival É Tudo Verdade em São Paulo, destrincha esquema tão cabeludo quanto o pesadelo vigilante do filme de Nolan, só que de verdade. Em hora e meia de filme, temos um documentário sobre estratégias do que há em tecnologia para vigilância e mistura sem vergonha entre público (governo) e privado (empresas), bem como um pessoal fazendo escolhas por você entre o certo e o errado (obviamente, crendo que estão certos. É gente assim que vai à passeatas democráticas pedindo intervenção militar). Só que “Citizenfour” não se fia em edição rápida como tuítes ou cenas acachapantes de espionagem dignas de CSI. Não. O filme de Poitras é seco e direto, com contextualizações rápidas para ninguém perder o bonde, mas centrado exclusivamente em seu herói, o cidadãoquatro Edward Snowden.

A primeira metade do documentário é sensacional em sua atmosfera. Quase toda se passa no quarto do hotel em Hong Kong escolhido por Snowden para se encontrar com a diretora e o jornalista Glenn Greenwald, do jornal britânico The Guardian. Contatada pelo Citizenfour por e-mail em climão de filme de James Bond (sério, alguém tem que pensar uma hora se é a vida que faz o cinema ou é o cinema que informa a vida), Laura leva sua câmera, liga o microfone e deixa Greenwald e Snowden conversarem, embora não seja bem isso o que fazem. A paranoia, justificada, come solta: Edward é extremamente reticente sobre seus convidados, a princípio, insistindo em checar minuciosamente todo o aparato que eles trouxeram (estamos falando de pedir para ver presilha de cabelo aqui) antes de soltar seu relato sobre as monstruosidades da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), da qual, até aquele momento, ele era contratado para administrar serviços de informação. As barbaridades da NSA são manjadas: extensa espionagem sobre nacionais dos EUA e pontos estratégicos do globo, arquivamento de conversas telefônicas de particulares a chefes de estado, intimidação de sites de busca e redes sociais para liberarem perfis de usuários. Enfim, tá tudo dominado. Os primeiros quarenta minutos do filme arrasam, principalmente se vistos em sala escura de cinema, pelo foco e metonímia do interrogatório ao qual estamos sujeitos o tempo todo nessa porca vida virtual.

O restante, como esperado, não segura a porrada da primeira parte – demérito algum, não haveria como. Ainda assim, há muito o que ver, especialmente um Julian Assange também foragido ajudando no traslado de Snowden para local seguro, longe do bufa-bufa que tomou de assalto o Congresso Americano, as páginas dos jornais mundiais e o pessoal da ABI responsável pelo celular de Dilminha, certamente vítimas de um demente “ô, meu querido”. O local seguro escolhido foi o bastião dos que velam pela vida alheia, a Rússia – Putin jamais perderia a chance de tripudiar dos que tentaram se meter na Ucrânia, assim como manter o estômago do nerd hacker Snowden ao alcance de um caviar batizado caso este se metesse à besta.

A Academia do Oscar 2015 premiou “Citizenfour” com a estatueta para melhor documentário, tentando desesperadamente emitir sinal de que ainda são malacos. Snowden, ao que consta, sequer foi sondado se gostaria de prestigiar Poitras no anfiteatro. Seu legado foi alargar o tráfico de contra-dados aberto pelo Wikileaks no começo da década, com isso pagando o preço de não mais poder dar abraço nos seus chegados, assim como Assange, que continua no limbo da embaixada equatoriana em Londres.

Infelizmente para a Secretaria de Estado dos EUA, esse roteiro não foi escrito por Christopher Nolan, de outro modo Batman já teria dado um pulo na capital britânica e invadido o espaço equatoriano, trazendo Snowden debaixo de capuz para ser devidamente julgado, sob preceitos pristinamente humanitários, e levado à forca por traição (outro grande momento do respeito à democracia no “Cavaleiro da Trevas”). A gente curte uma botinha na cara, vai?

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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