AC/DC: 35 anos da morte de Bon Scott

No século XV, momento de orgia nos mares depois que viram que ninguém ia desabar no cachoeirão da Terra Quadrada, uns navegantes olhavam, mas não davam fé pro torrão próximo à Índia. Só quase dois centênios depois um pirata inglês resolveu a parada pro rei Jorge III e mapeou o território. Como típico cretino nortista de sua época, acreditou não ver nada mais que um bando de primitivos e um ou outro cartão postal, decidindo tocar fogo num e se apossar do outro. E assim, ignorando cultura autóctone riquíssima pelo símbolo da violência, nasceu a Austrália.

Próxima etapa era colonizar a área com brancos, consensualmente superiores aos nativos. Não demorou a chegarem as primeiras levas de civilizados, na sua maioria ladrões, bebuns e arruaceiros que apodreciam nas cadeias de Sua Majestade. Mulheres foram catadas às pressas entre a população londrina carcerária e de rua, sequestro sendo medida corriqueira. Ninguém sabia ler, mas empunhavam peixeiras como poucos nos sete mares, garantia de assentamento cultural de altíssimo gabarito. A coisa estava braba para os aborígenes invadidos.

Os colonos organizaram cidades, pouco populosas e distantes umas das outras. Era mais fácil a comunicação entre Sidney e Londres que entre a costa e o interior. Quando não estripavam os nativos, os forçavam a ajudar a travessia pelo outback e a saber o que podiam ou não comer. Cresceram sob o signo da bandidagem, encarnada em Ned Kelly, e pelo tédio, amenizado por cerveja e pipocos na fauna local. A Inglaterra morria de vergonha, mas fazer o quê? Para os súditos de Vitória, eram uns caipiras violentos.

Daí que a promessa de sexo, drogas e violência trazida pelo rock’n’roll norte-americano no século XX era carne de canguru para os australianos. Enquanto os Beatles pegavam nas mãos das primas ricas, os caipiras já haviam cortado várias. Algo, no entanto, era atrativo: a ideia de se tornar um pop star não era má. Enquanto os píncaros da fama eram frequentados pelos Sinatras da vida, era melhor nem tentar; mas, porra, olha os Stones. Se o bem criado Jagger era sinônimo de encrenca, motoristas de ônibus encarnariam melhor o papel.

Os irmãos Malcolm e Angus Young acharam que Ronald “Bon” Scott era mais jogo no palco com eles que dirigindo vans para a banda falida na qual tocavam – curiosamente chamada “The Velvet Underground”, mas sem ligação com a chiqueza de agulha dos nova-iorquinos. E Bon foi, inaugurando seu estilo pedreiro nos palcos qualquer nota do agreste australiano (com o tempo, ele se sofisticou a ponto de usar os mesmos trapos de sempre, mas com estampa de oncinha), perfeitamente adequado à voz pastosamente horrorosa. Viam-se com uma banda de blues, mas o antropofágico vocalista desenvolveu seu ethos próprio, definitivamente longe do Mississipi: as letras não eram sofridas, Bon não ligava muito pra rima e os personagens eram desprezíveis. Por cima disso tudo, a banda mantinha o 4×4, só que encharcado de distorção. Primeiros clássicos versavam sobre os caminhos da fama alcoólica e fugas de cadeias, deixando claro de onde vinham.

Há 35 anos, Bon Scott morreu. Atravessava a rua e… não, obviamente. Morreu por ingerir algo imprestável, depois de legar a carta-testamento “Highway to Hell”. Morreu, também, por ser australiano, bronco e rico, mistura mais nociva que a que o matou. A banda decidiu gravar um disco em sua homenagem, o glorioso “Back in Black”, mas você só saberia disso se te contassem. A música continuou chula e sexista, com o adendo de alguém com voz mais horrenda que a do falecido.

O AC/DC nunca acabou. Vez ou outra, adicionam mais porcaria ao currículo invejável: prisões, clínicas para desintoxicação e assassinato. No fim das contas, alimentaram o circo hard rock com a dose certa de cavalices esperadas. Bon Scott foi parte essencial da ascensão (depende de como você encara) deste e, pode-se dizer, morreu em seu auge, coisa que pega bem entre fãs.

Ano passado, o governo australiano pediu perdão às famílias dos que morreram na Primeira Guerra Mundial. Jamais estenderam a cortesia aos aborígenes escorraçados. Para estes, é um longo caminho para o topo.

Fabio Martins

Santista de nascimento, flamenguista de coração e paulistano por opção. Fã de cinema, música, HQ, games e cultura pop.

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